domingo, 12 de junho de 2011

A BOTIJA

Mostra Rui Limeira Rosal 2010 – SESC CARUARU

24/04/2010

Espetáculo: A BOTIJA

Texto: Benício Júnior

Direção: Benício Júnior

Direção de Elenco: Sheila Tavares

Produção: Cia. Olhares de Teatro

Análise: Érico José Souza de Oliveira

Entre a farsa, a chanchada e o Agreste

O espetáculo “A botija”, com texto e direção de Benício Júnior é de fácil identificação: é uma farsa arianesca que mistura um pouco de chanchada e mostra uma ideia de Nordeste que permeia ainda hoje o imaginário brasileiro.

Não tomem aqui a expressão “de fácil identificação” como um elemento de desprestígio da montagem. Pelo contrário. É de fácil identificação porque tudo está muito claro: o conceito da montagem está claro, os recursos estéticos estão claros, o direcionamento interpretativo está claro. O encenador não deixa margem para dúvidas sobre o que ele pretendia fazer. E isso é bastante positivo.

Mas vamos por partes, esmiuçando aqui alguns pontos: quando trato a encenação de “farsa arianesca”, estou me referindo à forte influência estética que o texto carrega das obras de Ariano Suassuna, o que vou aprofundar mais à frente. Gostaria de discorrer, a princípio, sobre o caráter farsesco e de chanchada que a peça imprime.

Dos elementos materiais e imateriais do teatro

A arte da encenação, segundo Vsevolod Meyerhold, é a especialização mais ampla do mundo, pois cabe ao encenador fazer convergir para uma ideia nodal várias artes que transmitem de forma individual signos visuais e sonoros distintos. A complexidade ao se trabalhar com elementos diferentes está em conseguir fazer com que eles comuniquem o ponto de vista da encenação, sem ruídos.

Benício Júnior arregimenta e organiza de maneira muito objetiva seus propósitos de encenador, fazendo com que cada elemento – material ou imaterial – possa encaminhar o espectador para a veracidade do que está acontecendo na cena.

O que chamo de elemento material no teatro é o que pode ser palpável, visto ou ouvido, observado enquanto concretude, como os elementos visuais, sonoros, estéticos e plásticos da encenação.

Os elementos imateriais são os que emanam do trabalho conceitual do encenador, que não são vistos, mas são perceptíveis a partir do momento em que o encenador os orquestra com clareza e objetividade, chegando ao espectador por vias sensoriais, sensitivas e energéticas.

Entre esses elementos imateriais destaco a construção atmosférica das cenas e do espetáculo como um todo, o arrojo do tempo-ritmo da obra, a estruturação das formas de relação entre os atores e seus personagens, entre a peça e o público, bem como a organização energética e de temperaturas que o espetáculo propõe.

Todos esses elementos possuem diversos graus de comunicabilidade e são trabalhados a partir de nuances durante o percurso do espetáculo, fazendo com que o espectador possa mergulhar na obra a partir da construção de atrações que vão se encadeando e fazendo com que a fábula progrida e chegue ao seu final.

É a regência desses elementos materiais e imateriais no ofício da encenação que faz com que o espetáculo adquira um alto grau de imantação junto à plateia.

No caso de “A botija”, essa regência tem a felicidade de congregar tais elementos em prol de um espetáculo que se comunica enormemente com a plateia. Todos os elementos materiais criados para o espetáculo levam à leitura farsesca da obra, com algumas pitadas de chanchada.

Entre esses elementos, começo pela maquiagem – concebida pelo próprio encenador –, que, apresentando o rosto quase que como uma máscara branca que evidencia e exagera as feições do ator, traz a informação precisa do conceito de hipérbole que marca o espetáculo.

A artificialidade do embranquecimento do rosto e das características faciais das personagens, como bigodes, costeletas, sobrancelhas, pintadas a lápis preto, já denota que algo a mais em termos de veracidade é oferecido ao espectador.

Os apliques e volumes incorporados ao figurino também comungam da mesma informação, como é o caso das nádegas postiças do personagem Joca Porca, das barbas do Frei Augusto, da peruca e do bigode do Coronel Chico e do chapéu de Passim simulando dois chifres.

Assim é também a composição das vestimentas dos personagens que, de forma direta, orienta o espectador para suas respectivas personalidades, como o vestido com estampas delicadas de Rosinha, o traje de cangaceira de Maria Bela, a roupa suja e mal-amanhada de Joca Porca, o vermelho fogo do vestido de DasDores, o paletó do Coronel etc.

Os dois únicos elementos materiais que não dialogam com o todo do espetáculo são a iluminação e o cenário.

A luz de Cabeto Pereira é muito prejudicada por sua execução mal resolvida e sem sutileza. Além dos erros de operação ocorridos durante a sessão, nota-se uma falta de sensibilidade na operação por parte do técnico. A luz termina chamando atenção por suas mudanças bruscas, o que atrapalha o entendimento de seu conceito.

O cenário de Adriano Freire destoa completamente da dinâmica rítmica do espetáculo. Definitivamente, a era do telão pintado no teatro já se foi. O painel incomoda profundamente do ponto de vista estético, pois se torna um elemento morto numa cena viva. Talvez a supressão dele trouxesse ganhos à montagem.

Jogo a quatro mãos

A alma de um espetáculo não está impressa apenas na comunicabilidade de seus elementos materiais, mas, principalmente, na organicidade dos seus elementos imateriais. E é aí que Benício Júnior faz um producente encontro entre sua experiência em teatro e sua vivência em dança.

A dinâmica que ele estabelece em termos de rítmica de cena tem o cálculo preciso do coreógrafo. É acertada e precisa, assim como os deslocamentos e as gestualidades das personagens. O fôlego do espetáculo não se perde em nenhum minuto e está completamente coerente com a proposta estética do encenador, além de ser respondido pela entrega do elenco ao universo proposto pelo autor/encenador.

O fato do autor ter optado por trabalhar com uma diretora de elenco (Sheila Tavares) contribuiu para um grau de unidade importante no elenco, ainda que observemos alguns pequenos desníveis de atuação. O mais interessante aqui é que este tipo de profissional ao lado do encenador é mais uma acertada estratégia de Benício Júnior e que surte efeito na cena. Vale ressaltar que esta é a única produção dentro da Mostra que faz uso deste tipo de profissional, parceiro do encenador.

O diretor de elenco, ou diretor de ator, é uma profissional que não possui espaço nas produções teatrais brasileiras, mas sua importância pode ser capital a uma montagem, sobretudo quando o encenador não é necessariamente dado aos meandros e às sutilezas do trabalho de interpretação.

Não que seja o caso, mas, como a encenação demanda a organização e a resolução de vários problemas de toda ordem, às vezes, o trabalho dos atuantes fica comprometido e, por isso, é importante um profissional que olhe especificamente para estes seres tão sensíveis e delicados que são os atores – permitam-me este nível de ironia.

O casamento entre Benício Júnior e Sheila Tavares – permitam-me também o trocadilho – é eficaz, pois nos presenteia com personagens preenchidos de vigor, de vida, de energia (outra qualidade imaterial da cena), de ritmo, tudo isso fruto de uma preocupação e de um rigor sobre o que consiste o trabalho do ator.

A construção da atmosfera

Desde o início do espetáculo, a proposta de encenação fica clara através dos elementos jocosos que caracterizam as situações do enredo. A procissão fúnebre na entrada das personagens é a primeira informação do direcionamento dado ao espetáculo. O contraste entre o trágico da morte e o farsesco da vida é evidenciado pelo tipo de interpretação dada à cena.

A construção da atmosfera geral do espetáculo é produzida por esse estranhamento entre o fato e a representação do fato. É o que chamo de macroatmosfera. A partir da forma como o enterro é apresentado ao público, este já tem a percepção de por onde vai caminhar o tipo de relação e de proposição que o espetáculo demanda. A macroatmosfera está estabelecida e, a partir daí, ela tem que ser alimentada para continuar mantendo o interesse da plateia em relação à obra (o que se dá a partir das surpresas que a encenação promove no decorrer da trama, chamadas por Sergei Eisenstein de “atrações”).

Em se tratando de uma farsa, esse jogo de atrações deve se desenvolver num crescente que permita tanto o desenrolar do texto, no sentido da complexidade da trama e dos quiproquós que envolvem os personagens, quanto a percepção da inteligência da encenação e dos atores em cena.

Na verdade, como nos diz Patrice Pavis em seu dicionário dedicado ao teatro, a grande força relacional do ato cênico está no estabelecimento de um jogo entre os artistas e o público, no qual os primeiros propõem os códigos para que o jogo aconteça, enquanto o segundo, captando a ideia e compreendendo tais códigos, interage com o espetáculo.

Para Pavis, é esta dupla função do espectador, acreditar no jogo e, ao mesmo tempo, perceber como ele é construído e desenvolvido, que justifica a vida do ato teatral: “É nessa dialética que reside, provavelmente, um dos prazeres sentidos na representação teatral” (2005, p. 90).

São as microatmosferas que vão promover o passeio dos espectadores pela obra, fortalecendo seu nível de envolvimento e interesse em relação à peça. E isso acontece nas alternâncias de situações encontradas em “A botija”, que vão de cenas românticas a cenas de suspense, de medo, de intrigas, de violência, de equívocos etc.

A inspiração arianesca: a dramaturgia de um Nordeste inventado

Em debate no dia 22 de maio de 2010, o diretor Benício Júnior explicitou em público sua influência maior no tocante à criação dramatúrgica de “A botija”. Talvez nem precisasse, pois está evidente na carpintaria textual. Para o bem e para o mal.

Para o bem, porque Benício consegue recriar cenicamente um Nordeste inventado, reinventado e profundamente enraizado no imaginário brasileiro. Digo cenicamente porque, para mim, a inventividade que extrapola a estética arianesca está muito mais na cena, no espetáculo, do que na dramaturgia.

É aí que a influência mais prejudica do que ajuda. Tenho a impressão de que há muito mais uma devoção ao estilo Suassuna de escrever do que uma fonte de inspiração para uma criação autoral. O texto beira a imitação de uma escritura já consagrada pela pena de Ariano, o que funciona, de certo, pois é altamente popular no sentido da comunicação, mas cheira a plágio. O vigor da criação autoral no caso de “A botija”, repito, está muito mais na montagem do que na dramaturgia.

E tomo a liberdade de fazer este comentário porque sei do potencial criativo do autor em questão. Benício Júnior mostra muita intimidade com o universo teatral, além de ter um gênio forte e resignado a construir arte. Talvez, como experiência dramatúrgica inicial, tenha sido uma boa escola, mas já é hora de passar para um outro estágio de criação própria, intertextual, claro, como toda escritura, mas mais independente em termos estilísticos.

Benício também termina trazendo para seu texto as mazelas das escrituras de Ariano Suassuna, como a verborragia excessiva, o acúmulo de tramas paralelas, a extensão do texto que ultrapassa o tempo do espetáculo. Inspiração de Molière (entre outras) no nosso defensor de um Nordeste armorial, quase europeu: “Tudo fica bem, quando termina bem”. Ficamos na espera do desenlace da história que não chega nunca, pois milhares de coisas acontecem no meio do caminho.

Que não se confunda: não estou tirando o mérito da produção textual. Ela é funcional para a cena. Estou apenas apontando um desafio: a coragem para uma criação mais autoral.

O texto de “A botija” está dentro das necessidades do que o autor queria discutir enquanto temática e enquanto encenação. É aí que ele funciona, servindo de pretexto para a criação do espetáculo. E isto está tão claro que o elenco se mostra completamente à vontade entre texto e improviso.

Ah! A juventude...

Mesmo emperrados pelos inúmeros quiproquós e causos do texto, esse elenco jovem demonstra uma garra fenomenal em cena, atuando com raça e determinação em busca do gol da vitória. Decididamente, a juventude traz a força da transformação. Nós, gerações mais “experientes” – para não dizer “jurássicas” –, não podemos perder a oportunidade de aprender com eles, como nos diz sabiamente Nildo Garbo em suas intervenções poéticas durante as discussões da Mostra Rui Limeira Rosal.

Há uma energia que é renovadora na atuação do elenco, inspirada numa crença absoluta na dignidade do trabalho. Mesmo que, como nos pontua o encenador, o resultado tenha sido fruto de muito trabalho com eles, de cobranças de responsabilidade a uma busca pela disciplina necessária ao tamanho do evento, há um frescor, uma entrega muito própria e digna de um grupo de jovens atores que, certamente, passaram por uma experiência rica e potente sob as mãos de um mestre exigente e, sobretudo, cuidadoso.

A dupla Adeilson Gigante e Manoel Júnior demonstram uma química explosiva em cena. O primeiro domina a dificuldade que seria o seu tamanho construindo um personagem arqueado que nos transmite um prazer na sua atuação dançada, saltitada e, poderíamos dizer em forma de alusão, comicamente dell’arte.

Manoel Júnior parece um passista de frevo em cena, de tão leve. O ritmo farsesco está impregnado no corpo destes dois intérpretes de forma absoluta. Nota-se também um mergulho profundo na estrutura das personagens-tipo (Joca Porca e Passim, respectivamente), o que acarreta uma grande empatia por parte do público, ao ponto de a plateia, em peso, recitar o poema criado por Joca.

A Cangaceira Maria Bela, defendida por Andresa Queiroz, possui energia, presença cênica e vigor que tiram o fôlego. Dentre as atuações femininas, é a mais impactante. E, em alguns momentos, me fez lembrar de uma outra grande atriz do teatro caruaruense: Prazeres Barbosa. Talvez influência do aprendizado de outrora. Excelente influência, por sinal.

O Capanga Abelardo, de Williams Costa, também consegue um resultado bastante interessante em cena: ele vai de um polo ao outro sem perder a fé cênica nem a força da personagem. Da valentia à fragilidade da paixão pelo Coronel Chico, ele cria uma suspeita de homossexualismo, ou melhor, homoafetividade (expressão tema desta mostra graças às argumentações de Maria Rita Freire), que é desfeita ao final da peça, quando se descobre que o coronel é, na verdade, sua filha disfarçada.

Gerlane Nogueria, que faz o Coronel Chico, tem mais dificuldades em termos expressivos dentro da proposta, pois ainda não domina precisamente questões como trabalho energético, consciência corporal e vocal, além da expressividade proposta pelo jogo farsesco. É preciso treinar e explorar mais as habilidades que a cena demanda. O mesmo ocorre, em menor grau, nas atuações de Rosemere Beserra (Rosinha), Davi Geffson (Frei Augusto), Juan Carlos (Seu Tonho) e Pollyana Santos (DasDores).

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