domingo, 12 de junho de 2011

A BOTIJA

7. A botija

Mostra Rui Limeira Rosal 2010 – SESC CARUARU

Texto e Direção: Benício Júnior

Produção: Cia Olhares de Teatro

Análise: Luiz Felipe Botelho

A botija é uma comédia ambientada no interior nordestino, com situações e personagens onde ecoam aspectos de outras peças do gênero, mais especificamente as de Ariano Suassuna (“Auto da Compadecida”, “O santo e a porca”, “A pena e a lei”). Mas o autor não se contentou em permanecer no eco de suas influências, brincando (no melhor sentido) com as possibilidades do universo que escolheu para trabalhar e demonstrando talento dramatúrgico a ser cultivado e ampliado, como abordaremos adiante.

O início da peça dá uma impressão distinta do que veremos no palco. O elenco entra cantando pela platéia, sob uma iluminação em tom âmbar-avermelhado. Os gestos dos atores parecem estilizados e suas expressões sugerem máscaras. Os versos bem humorados enfatizam a comicidade do que está por vir. Porém, uma vez no palco, essa construção estilizada desaparece e dá lugar a uma típica encenação de comédia nordestina. Confesso que me senti um pouco desconcertado pois a abertura parecia prometer uma outra abordagem do gênero. Entretanto, passado esse primeiro momento, apesar das estéticas distintas na abertura e no corpo principal do espetáculo, pouco a pouco ficou claro que o autor e diretor Benicio Júnior e seu elenco não ficariam apenas no “típico”.

Benício é um artista com imensa criatividade a ser explorada. Nesta montagem ele deixa evidente seu potencial para lidar com situações cômicas. Ele usa o anúncio do óbvio para driblar a obviedade, citando o que a platéia já conhece e usando essas referências para ir além do que é esperado. A construção da comicidade na peça é simples e original no modo como o autor se vale de modelos clássicos, como por exemplo a repetição de um bordão em situações diversas. É o caso de quando o protagonista decora uma poesia como recurso de conquista amorosa e passa a utilizá-la ao longo de toda a peça. Ao invés de se tornar algo forçado, o recurso não só é introduzido em momentos inesperados como acaba se tornando numa marca simpática do espetáculo, levando a própria platéia a recitá-lo no terço final do espetáculo. O elemento-surpresa também é outro recurso usado com muita pertinência, desde a dramaturgia à ação cênica, como ocorre com o capanga-amante do Coronel que, em dado momento, toma tamanho susto que se urina todo diante dos olhos e risos da platéia.

Essa utilização do inesperado se estende também aos personagens que, se a princípio podem parecer caricaturais e sugerir uma construção maniqueísta e superficial de suas personalidades, cedo ou tarde surpreendem com atitudes que os humanizam, dando uma cor inesperada e bem vinda ao espetáculo. É o caso do amigo traidor que se arrepende da traição e tenta desfazer o malfeito, da cangaceira mulher-macho que no fundo é muito fêmea mesmo, do suposto casal gay que esconde um segredo à la Diadorim & Riobaldo[1], da moça que parece frágil e submissa mas tem coragem suficiente para desfazer um namoro equivocado.

O mesmo acontece com Joca Porca (Adeilson Gigante), personagem central e anti-herói por excelência. A um olhar precipitado, ele pode ser confundido com o tipo de pessoa que sempre será tratada com desdém, servindo de joguete na mão de aproveitadores. O andamento da história vai mostrar, sem maniqueísmos, que as coisas não são bem assim. Joca lida com porcos e, pela familiaridade que tem com esses animais, tem dificuldade em avaliar a qualidade de sua limpeza ou do cheiro do próprio corpo. Esse dado escatológico vai mais além, como no hábito do personagem de usar grossas cusparadas para ajudar a manter os cabelos – os dele e os dos amigos – em ordem, O texto e a direção de Benício junto com o trabalho de ator de Gigante fazem dessa figura desconcertante um protagonista divertido e interessante, cuja ação alinhava as sub-tramas da peça e aponta para outras leituras sobre o que está sendo posto em cena.

Se esse aspecto é positivo, revelando camadas de conteúdo além do interesse cômico, nota-se em alguns momentos a necessidade de organizar e equilibrar melhor esses conteúdos à medida em que são apresentados ao longo da história. E isso não é tão simples, porque a peça apresenta três focos temáticos centrais e interligados: a busca da botija, a venda de um porquinho e os encontros e desencontros amorosos entre personagens. O problema ocorre quando esses focos parecem ser deixados de lado em benefício das piadas verbais e físicas. Isso implica em dois riscos permanentes: truncar o ritmo da peça e dificultar o entendimento da história que está sendo contada. De fato, em alguns momentos me perdi no acompanhamento da história e, ainda que isso não tenha permanecido por mais que alguns instantes, por duas ou três vezes me vi perguntando a mim mesmo “sobre o que é mesmo essa peça?”

O elenco é equilibrado nos desempenhos, de modo que seria até injusto destacar este ou aquele trabalho, quando todos se dedicam e investem na interpretação de seus papéis: é um grupo que tem vida, é talentoso, envolve a platéia e faz a peça acontecer. A todos recomendo que cuidem bem desse talento. Que se atrevam a ampliar seus conhecimentos sobre seu instrumento de trabalho (o corpo) e sobre as inúmeras técnicas e teorias teatrais que auxiliam no refinamento desse domínio. Quando falo em “dominar” os potenciais do corpo, me refiro a tomar ciência de tudo o que um ator/atriz pode ser capaz de realizar na cena, apropriando-se corporalmente desse conhecimento e colocando esse poder (poder como possibilidade) à serviço de uma peça. Para os artistas da cena que querem se aprimorar, é importante que esse trabalho de pesquisa pessoal seja permanente.

Se o corpo é o instrumento dos atores, os equipamentos do teatro são o instrumento dos técnicos desta produção. Sobre esta área, seguem algumas observações visando provocar reflexões sobre as possibilidades de materialização da cena através da estrutura disponível para a chamada equipe técnica de um espetáculo.

Em “A botija” a cenografia é composta por três painéis pintados que, além de sugerir a paisagem da cidade onde se passa a história, parece ter sido pensada sobretudo para acrescentar mais dois acessos ao centro do palco. Como elemento complementar e decorativo, é interessante, bem executada, mas é bom ter consciência de que, de certo modo, essa opção tende a “fixar” a cena. Não há como fugir das imagens que aqueles painéis contêm. Há até pessoas desenhadas nas janelas, gerando questões que o espetáculo não responde nem pretende responder, como: quem são aquelas pessoas nas janelas? Por que nunca saem das janelas?

Quanto à iluminação, ela parece tímida. Poderia aproveitar melhor os recursos do teatro, especialmente na distinção entre dia e noite, quebrando um pouco o chapado das gerais frontais. A existência de elementos sobrenaturais na história também justifica a criação de um ou dois efeitos de luz mais elaborados que pontuassem as aparições ou criassem um clima diferenciado para receber essas “visagens”.

A maquiagem rústica lembra a caracterização de personagens de folguedos populares, como mamulengos e brincadores de cavalo marinho. Essa solução não dialoga muito bem com os figurinos, que não acompanham a rusticidade da maquiagem (ou vice-versa). De qualquer modo, esses trajes são bem executados e tanto funcionam no corpo dos atores quanto compõem bem com o cenário, graças ao seu cromatismo em tons terrosos.

Mas tudo isso são detalhes que não sufocam o essencial. Do mesmo modo que os atores, os técnicos do espetáculo demonstram interesse e empenho em obter bons resultados, pelo que também é recomendável que não se contentem com o que já conseguiram e busquem aprimorar seus conhecimentos. É um momento excelente para se vincular ao interesse do SESC em investir na reciclagem e aprimoramento dos artistas e de experimentar ousadias criativas aproveitando o potencial de espaços com equipamentos modernos, como o Teatro Ruy Limeira Rosal.

Para A botija, o mais importante já foi conquistado e tem brilho próprio, pois o espetáculo acontece e se comunica muito bem com a platéia. Isso pode ser creditado ao inegável potencial de todos os envolvidos na realização desse trabalho. É um espetáculo feito com paixão, talento e – sobretudo – muito prazer. Estas são condições essenciais para o sucesso de qualquer apresentação teatral.



[1] Diadorim e Riobaldo são personagens de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Os dois personagens masculinos vivem um romance platônico e proibido, até que um deles é assassinado e todos descobrem que se tratava, na verdade, de uma mulher.

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